2009/04/14

De Pacto Orthographico

Provavelmente está evidente que não aprecio o acordo ortográfico para a língua portuguesa.

Estivesse em minhas mãos algo nesse sentido, procuraria aproximar a grafia do idioma de suas raízes etimológicas. O Português, no entanto, tem evoluído no sentido inverso: a escrita se aproxima cada vez mais da língua falada, com relativamente pouca importância à origem das palavras. Isso às vezes produz efeitos curiosos: palavras de classes gramaticais diferentes, mas com uma raiz etimológica comum, vão se tornando cada vez mais dissimilares. Penso que a principal causa para isso na pronúncia é a diferença nas sílabas tônicas, que favorecem a preservação de alguns fonemas em alguns casos, enquanto facilitam a elisão ou transformação em outros. Um caso que me vem à mente é o das palavras "exceto", "exceção" e "excepcional". Os portugueses tinham com elas uma vantagem: por não terem suprimido -- antes desse acordo, ao menos -- a letra "p" de "excepto" e "excepção", a relação etimológica e filológica entre as palavras fica mais evidente.

Por outro lado, os portugueses não tinham o sinal para distinguir o "u" mudo daquele que devia ser sonoro (como semivogal) em palavras contendo "que", "qui", "gue" e "gui". Nós brasileiros tínhamos o trema e, no caso da conjugação de alguns verbos (como "enxaguar"), também o acento agudo (3ª pessoa do singular do presente do subjuntivo, "enxagúe"). Essa vantagem na leitura à primeira vista de palavras desconhecidas nos foi amputada. Alguém que leia pela primeira vez "enxague" certamente saberá que ela é paroxítona, mas será paroxítona como "enxágue", "enxágüe" ou "enxagúe"? A nova regra deixa possibilidades abertas para as três opções; apenas conhecimento prévio indicará que a forma correta é justamente a mais incomum, se comparada ao resto do idioma.

O exemplo acima leva a uma crítica extrema: a reforma foi tímida ao lidar com certas idiossincrasias -- como escrever "que" para ter apenas "kê", o que não existia na língua mãe latina, que não tinha letras mudas -- e ainda introduziu idiossincrasias novas, como a tripla possibilidade de pronúncia de uma palavra desconhecida. Se o objetivo é privilegiar a fonética, uma reforma profunda faria a letra G soar sempre como soa em "gago", eliminando a vogal muda de "guerra", e usaria o J em seu lugar na palavra "gelo". O C deixaria de ter dois sons (como no Latim original, antes de ser "amaciado", por influência bárbara, no romance), soando sempre como soa em "caco", ou se usaria logo o K, já que foi reincorporado ao alfabeto. No lugar do C de "cenoura", entraria o S, cujo som jamais voltaria a se confundir com o do Z (a exemplo do que se tinha no Latim, em que S sempre sibilava, e o Z sempre zumbia). A letra X precisaria de um cuidado especial, pois o som do chiado não existia na língua mãe, mas o som de "ks", que era seu som primitivo, se consegue muito bem com "cs" ou "ks". De todo modo, não deveria mais haver as quatro opções de pronúncia, como havia antes do acordo e continua havendo agora.

As regras para o hifen mostram mais arbitrariedades incongruentes. Não há mais hifen em palavras em que ele sempre esteve, mas passou-se também a usá-lo onde nunca se usou antes. Para ficar mais esdrúxulo, em alguns casos se pode optar por usar ou não, e em outros ele é usado sempre com alguns prefixos, contrariando os preceitos de justaposição da regra principal. É um samba-do-crioulo-doido -- com ou sem hifen.

O acento agudo na terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo parar não deveria ter sido eliminado. Já vi casos engraçados em manchetes de jornal, que, por serem sucintas, nem sempre trazem o contexto para distinguir o verbo da preposição homógrafa. "Buraco para o trânsito da Zona Sul", por exemplo, pode significar duas coisas quase diametralmente opostas.

Essa reforma é, em quase todos os pontos, uma estupidez, gerando muito calor para muito pouco aproveitamento de energia.

2 comentários:

Marcus disse...

Achei curioso que você primeiro diz que prefere uma grafia etimológica e depois dá ótimos exemplos de como seria bomo ter uma ortografia fonética, para poder ler uma palavra desconhecida à primeira vista.

Também sou contra a reforma, e justamente por ser pouco fonética e muito ambígua. Principalmente o caso do U mudo, do C/Q e G/J e do X/CS poderiam ter sido melhorados, se não sanados completamente.

O caso do C/SS, X/CH e S/Z eu acho mais complicado porque são muitas palavras que mudariam completamente de aparência (o que dificultaria a nossa vida) e algumas palavras são diferenciadas justo por essas letras, ex.: roxa, rocha, paizinho (pai+zinho), paisinho (país + inho). Claro que a diferenciação pelas consoantes é por acaso, as diferenças dessas palavras estão nas vogais, mas mesmo assim...

Paulo Pires disse...

Não acho que seria bom. Sou crítico da solução de "nem-nem", que nem assume compromisso definitivo com a evolução fonética, nem com a origem etimológica clássica.